quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O Homem


Eu sempre fui movido por medos bobos quando eu era uma criança. Aquela coisa de achar que tem algo no escuro, ou debaixo da cama, ou no armário. Eventualmente, esses meus medos foram cessando, e tive de aprender a ser mais duro com as coisas, no geral, com tudo na vida. A racionalizar mais, a ser mais adulto. Crescei, inevitavelmente. E foi durante o auge de meu amadurecimento racionalizado que conheci o Homem.


Minha prima havia ido dormir lá em casa certa noite, e estávamos sentados na sala, conversando sobre qualquer coisa, quando o tópico sobre fantasmas surgiu. Acho que estávamos vendo algo sobre isso na TV para que o assunto tenha aparecido. Durante a conversa, ela se abriu comigo e me contou que era perseguida por um fantasma a anos. Se soltou, desabafou e me contou as experiências.

A primeira foi quando ela havia concluído o treino de chefe de torcida e esperava a mãe ir buscá-la na escola. Ela olhou para um dos lados e lá viu ele. Estatura mediana, chapéu amarelo de construção, camisa preta suja de terra, luvas de trabalho e calça jeans sujos de sangue. Por volta dos 50 anos e com os olhos mais arregalados que ela já vira na vida, e uma expressão facial de resmungo terrível. Me contou do susto que levou, e de como reagiu pensando em logo correr para casa com medo dele. Quando ela fez um movimento e olhou de volta, ele havia desaparecido, e logo em seguida sua mãe chegara.

A outra experiência foi certa vez que ela voltava para casa do trabalho e ao finalmente entrar em casa, quando estava tirando os brincos no espelho, pode ver ele no reflexo, se virou e viu ele lá, na sua cozinha. Pode ver cada ruga e mancha do rosto dele, o sangue fresco e também seco em algumas partes, a terra caía de sua blusa branca. Ela, já um pouco mais acostumada com a aparição dele, não gritou, apenas fechou os olhos e abriu de novo. Ele ainda estava lá. Ela só correu para seu quarto e foi perseguida pelos seus olhos terríveis. Na manhã seguinte, haviam pegadas de botas de trabalho por todo o andar de baixo. Ela piscou, e as marcas haviam sumido.

Houveram muitas outras aparições, mas de menor porte ou importância. Segundo ela, ele nunca a machucou ou atrapalhou, só, realmente, aparecia com muita frequência e assustava muito. Ela me contou tudo isso, e eu achei meio difícil de crer. Ainda assim fui compreensivo e deixei ela chorar em meu ombro. Me agradeceu, dizendo se sentir bem melhor por dividir aquilo com alguém.

Acordei naquela mesma madrugada, as 3:30, em uma piscina de suor. Corri para a garagem para conseguir um ventilador, para que talvez o fim da  noite fosse possível conseguir dormir. Quando abri a porta da cozinha para a garagem, lá estava ele. A menos de dois metros de mim.

A mesma descrição que ela dera. Capacete de obras, luvas de trabalho, jeans e luvas sujos de sangue, camisa suja de terra, olhos arregalados e uma expressão de ódio em sua face. Pulei para trás, gritei alto demais e derrubei muita parafernalha.
Naturalmente acordei a todos. Meus pais chegaram em segundos, perguntando mil coisas que eu não respondi. Só conseguia apontar para o lugar onde ele estava. Ao olhar, bem, ele não estava mais lá. Minha prima chegou logo em seguida, assombrada, desconfiando o que devia ter acontecido. Trocamos olhares e voltamos para cama. Minha mãe me deu calmantes e eu apaguei logo, drogado.

No dia seguinte minha prima voltou para sua casa, despedi-me dela, mas só conseguia pensar em como era aliviador em saber que ela indo embora, o homem iria com ela. Todos concordamos com isso sem trocar nenhuma palavra sobre o assunto. Eu me arrependo muito. Deveria ter especificado. Talvez ele tivesse ido com ela...

Mais uma noite de insonia, dessa vez, devido a meu espelho que se quebra expontaneamente. Pulei da cama e fiz contato visual com ele. Usando as mesmas roupas de sempre. Ele movia os lábios, mas nenhum som saia. Não sei ler lábios, mas ele me xingava, com toda a certeza. Ficou um bom tempo sem mexer a boca e logo em seguida, começou de novo, dessa vez, com a fala de alguém que faz algo que não gosta. Pude ouvir sua voz reverberar em algum profundo lugar do meu cérebro. "Proteger. Você." Não podia entender mais nada, era só como uns zumbidos graves na minha cabeça. Ele começou a se mover em minha direção, e logo encostaria em mim. Pulei para minha cama, mas ainda a tempo de perceber que era um blefe dele, só para que eu me deitasse. Me cobri dos pés a cabeça e eventualmente dormi.

Pela manhã tive de falar a minha mãe que quebrei o espelho sem querer. Não pensei duas vezes, liguei para minha prima e conversei:

Eu: "Tem tido visões do Homem ultimamente?"
Ela:"Meu Deus, não, como você sabe?"
Eu"Ele realmente não tem lhe perturbado?"
Ela:"Não, graças a Deus. Mas, ei, o que est..."
Eu:"Nada mesmo?"
Ela:"Nada. Não tenho tido nenhuma visão desde que lhe visitei..."
Eu:"..."
Eu:"Obrigado. Nos falamos depois. Tchau."
Ela:"...Até logo..."

Minha prima morreu dias depois. Só pude notar as intenções do Homem comigo depois de muito tempo. Ele é meu protetor. Nunca deixa meu lado. Não quero nenhum tratamento especial e estou cansado dele o tempo todo comigo, todo dia. Não quero ser protegido a esse custo... só quero minha vida de volta.



----- Um mês depois -----


Ele tem me salvo da morte todo esse tempo. Como eu não percebi que estava sempre tanto em risco? Talvez ele escolha pessoas especiais e as proteja... Talvez ele só decide te seguir randomicamente, ou talvez ele escolha as pessoas que estão prestes a morrer e as segue para lhes dar mais tempo. Eu sei que sob essa ameaça de ser deixado e morrer, tudo que eu quero é manter ele comigo o máximo que puder. Não vou deixá-lo ir, não posso falar dele a ninguém nem deixar ele entrar em contato com ninguém. Me mudei para um apartamento de porão em um dos extremos da cidade. Ainda tenho muito a viver, não posso perder ele. Não agora. Ver seus olhos graves e sua expressão de rancor e ódio refletida em meu notebook conforme escrevo isso me deixa muito seguro.

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