quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Orquestra Cigana

Então, hoje eu estava com meu Pai no Skype, ele ainda vive em Montenegro Já estava de noite e ele estava tomando uns drinques. E Deus sabe, quando aquele homem bebe, ele gosta de falar. Após meia hora dele me contando em como costumava ser um imã para meninas nos seus dias, meu celular tocou. Meu ringtone é uma composição clássica que eu gosto bastante, chamada Por Una Cabeza. Apertei em ignorar e voltei ao computador.
“Desculpa pai, prossiga.”
Sem resposta.
“Pai?”
Nada. Desde que meu celular tocara, meu pai havia se tornado no mínimo dois tons mais pálido.“Pai, ta tudo bem? Eu perguntei, preocupado.”
“A música, de onde é?” Ele mal gaguejava as palavras para fora.
“É só uma música que eu gosto… Porque?”
“A última vez que a ouvi...”
Meu pai é um cara durão e raramente mostra emoção, e vendo que ele estava afetado por isso, mesmo sob o efeito do álcool, era estranho.
“Me conta o que foi, pai.”
“Eu já lhe contei sobre a Orquestra Cigana? Sem olhar diretamente a mim.
“Não. É outra de suas aventuras?” Brinquei.
Seu rosto se manteve sem expressão, o que tirou o sorriso do meu rosto imediatamente.
O que está escrito a seguir, é o que meu pai me contou, a partir de sua perspectiva.


“Na Yuguslávia dos anos 80, nós costumávamos viver bem, bem melhor do que hoje em dia. Claro, era comunismo e não se tinha tantas chances, mas você tinha um emprego garantido assim que saísse da escola e as taxas criminais eram quase zero. 
A vida era boa para todos. Bem, quase todos. Haviam pessoas que ainda eram descriminadas. Nesse caso, os ciganos. Sabe sobre eles? Não?

Diz-se que os ciganos são uma tribo da índia que tem se arrastado pelo mundo a séculos. Eles não têm status em lugar nenhum, e a grande maioria são mendigos. Eles, geralmente, tocam música pelas ruas, pedindo por trocados para as pessoas. Alguns os ignoram, alguns os ajudam, outros só são idiotas com eles. Meu colega de quarto Besim e eu costumávamos nos carregar de bebida no fim de semana e sair bebendo e correndo atrás das garotas e dos bares legais da cidade. Em um fim de semana destes, estávamos voltando para casa a pé, e a neve chegava a nossos joelhos. Para garotos jovens como nós, um taxí seria um luxo impagável no momento, então caminhamos estressados até nosso prédio. Quando entramos no corredor principal, a luz estava apagada e ouvimos um som. Alguém tocava música, aquela do seu celular, numa gaita. Besim alcançou o interruptor e ligou a luz. Era um garotinho de uns 6 anos, um cigano. Ao nos ver, estendeu a mão na direção de Besim e perguntou se ele tinha alguns trocados.

Besim não respondeu, só continuou olhando para a criança com os olhos injetados de sangue.

Senti pena da criança. Vasculhei meus bolsos e achei umas moedas.
“Aqui garoto.” Disse, dando o dinheiro.
Nesse momento, guiado pelo que julgo ter sido álcool e raiva, Besim estapeou a mão da criança, jogando os trocados no chão.“Mas que merda cara?” Me segurei para não gritar com Besim e acordar os vizinhos.
“Essas merdas desses ciganos, sujando meu prédio!” Gritou e olhou para a criança, que se manteve parada, com o braço ainda estendido, olhando diretamente para Besim.
“Some daqui caralho!” Grita mais uma vez Besim, agarrando a camisa da criança e arrastando-a para a porta.
“Para caralho, cara!” Eu agora grito também. Besim, sendo bem maior que eu, me empurra de volta e prossegue puxando a criança.
“E não deixe eu te ver por aqui de novo, seu pedaço de bosta!” Besim ameaça a criança.
Agora, descalça como estava, a criança permanecia na neve, que facilmente chegava até seu quadril. 
Ainda segurando sua gaita. Eu posso vê-la tremendo de frio.“Você não quer fazer isso.” disse a criança na voz mais calma possível. Sua mandíbula tremendo com o frio.
“Mas o que?!” Grita Besim, ainda mais enfurecido. “Seu merdinha!”

Tentei pará-lo, mas ele era bem mais pesado e bem mais forte do que eu. Besim andou até a criança e deu um tapa tão forte que fez ela cair na neve. Corri até lá.
“Pelo amor de deus homem, já basta!” Disse, agarrando a jaqueta de Besim, “Vamos entrar de volta!”
Ao que andávamos de volta para o prédio, ouvimos a voz da criança dizer outra vez: “Você não deveria ter feito isso.”
Nos viramos e a criança estava de pé. Puxei a jaqueta de Besim o mais forte o possível pois eu podia sentir que ele ia matar a criança.

Ao invés de sair na neve, Besim tira uma lata fechada que levava no bolso de seu casaco e joga na criança, acertando em cheio a testa. Absurdo foi o quão silencioso foi, a lata batendo, o baque surdo e a criança caindo na neve fofa.

“Seu doente de merda,” Gritei com Besim, direto nos olhos. Corri até o menino. A neve ao seu redor estava ficando vermelha do fluxo sanguíneo saindo do machucado em sua cabeça.
“Você o matou!” Gritei de volta a Besim, assustado de que ele realmente houvesse matado a criança. Besim, parecendo assustado, veio ver o que ele havia feito. A luz da primeira varanda do prédio foi ligada.“Temos que sair daqui.” Disse Besim.
“Não, ele precisa de ajuda!” Respondi, tentando sentir o pulso da criança..
“Meu Deus cara, é uma porcaria de um cigano, homem. E se alguém nos ver, iremos pra cadeia.”
Foi difícil pensar nisso na hora, estava assustado, então me levantei e corremos para casa. 
Não tenho orgulho disso. Eu chamei a polícia do meu apartamento para a criança. Não sei se chegaram a pegar ele algum dia.
Ciganos não são exatamente a prioridade.
Passei o dia seguinte gritando com Besim. Nós chegamos até  perto de nos atingir com murros em alguns momentos. Ligaria para a polícia acusando Besim, mas ele não seria preso por bater em um Cigano. Me tranquei em meu quarto, sem querer ver aquele homem outra vez na vida.

Adormeci tarde naquela noite. Por volta das 4 da madrugada, ouvi música. Não era particularmente estranho porque Besim costumava ouvir suas músicas toscas quando ficava muito bêbado. O problema é que eu reconheci a música. Era a música que a criança tinha tocado no corredor na noite passada. Achei que a criança talvez tivesse se recuperado e retornado ao corredor. Me levantei, querendo ver se era realmente ele; Se fosse, precisaria tirá-lo de lá antes que Besim descobrisse-o.

Quando saí do meu quarto, congelei. A música não vinha do corredor, do lado de fora. Vinha, de fato, do quarto de Besim. Era claro, sem dúvida em minha mente, era a mesma música da última noite. Lentamente andei até seu quarto e bati de leve na porta.
Sem resposta, e a música continuava a tocar.
“Besim, ta tudo bem?” Perguntei, sem receber resposta.Precisava olhar dentro. Queria tanto que minha curiosidade não houvesse vencido meu cérebro.Abri a porta. A música parou.O quarto estava escuro, iluminado apenas por uma fraca luz que provinha da rua. De onde eu estava, podia apenas ver a cabeça de Besim no travesseiro.
Ele estava acordado. Sua cabeça se virou na minha direção, seus olhos abertos. 
Esbugalhados, melhor dizendo, extremamente assustados.
“Besim?” sussurrei, assustado.
Seus olhos se abriram ainda mais. Abri a porta por completo. Então o vi. Caralho, eu vi ele. 
Na ponta da cama de Besim, bem ao lado de seu pé descalço, estava o menino cigano ajoelhado. Ele olhava diretamente para mim.
“Mas que merda...” Consegui dizer, conforme meu queixo caia.

A criança aproximou a gaita da boca.
“Sai, agora.” 
Disse, calmamente, parecendo bastante sério. A luz da lua iluminou-o e pude ver que ainda sangrava pelo ferimento da testa. Não sabia como ele estava vivo com tanto sangue saindo da cabeça.
“O que você está fazendo para ele?” Sussurrei, praticamente paralisado de medo.
“Estão vindo... Você deveria sair agora,” disse a criança, se virando para Besim. Ele pôs a gaita de volta na boca e começou a tocar a música de novo. Fiquei lá por mais meio minuto ou algo assim, sem saber o que fazer. Besim não saiu da cama, ele sim, estava, de fato, paralisado. Seus olhos falavam por ele. Horror. Tudo o que diziam. Horror. Não sei se ele estava com dor, mas com certeza, estava aterrorizado. Quem não estaria?
“Sai, AGORA!”
Pulei. O garoto olhava para mim, seus olhos eram negros,mas posso jurar que ficaram muito mais escuros pois não via mais o branco deles.  Tinha que sair. Não sabia o que estava acontecendo, mas sabia que não era mais seguro. Ao que estava fechando a porta, vi algo que vai ficar comigo para sempre. A criança começou a morder o pé de Besim. E eu não estou brincando. Não foi uma mordida violenta; ele só colocou a boca ao redor dos dedos. Olhei para Besim e pude ver lágrimas saindo de seus olhos, escorrendo por suas bochechas. Ele me implorava por ajuda com seu olhar, mas não poderia fazer nada, eu precisava sair dali, correr para o mais longe que pudesse.

Enquanto saia do apartamento, vi pegadas da neve e água na sala, a criança deve ter trazido quando entrou. Fechei a porta e comecei a descer as escadas. Comecei a ouvir novamente a música, mas, dessa vez, mas complexa, como se não fosse só mais uma pessoa tocando, Não ia ficar por lá para tentar entender. 
Corri escada a baixo. E pude ver mais neve, muito mais neve, não tinha como só aquele menino ter trazido tanta neve. Quando saí do prédio, parei.
Centenas de pegadas frescas vindo da rua levavam direto ao nosso prédio.

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