segunda-feira, 4 de março de 2013

Hora de Dormir IV (pt.7)


A noite passada foi a mais comovente e assustadora da minha vida, tanto que eu mal consigo pensar nela direito. Agora eu vou escrever para vocês o que aconteceu durante a minha visita aquele lugar que um dia eu tinha chamado de lar; uma visita o qual marcou o retorno dos temores da minha infância. Mas não importava o que eu já tinha experienciado antes, nada poderia ter me preparado para aquela noite.


Depois de acordar com a visão arrepiante daquele soldadinho mordido no meio, eu vi que a janela do meu quarto estava entreaberta. Depois de uma inspeção mais de perto, parecia que a janela tinha sido forçada pelo lado de fora. As travas tinhas sido dobradas para trás, fora de sua posição original, como se tivessem sido puxadas com uma força bruta.

Pelo lado de fora da janela, eu podia ver três recortes onde o invasor tinha usado algum tipo de ferramenta para alavancar estranhamente a janela longe do fecho.  O que era peculiar a respeito dessas marcas é que elas pareciam atravessas o exterior da janela de uma forma irregular, como uma velha lâmina torta, e não como um pé de cabra ou qualquer outro instrumento que teria deixado apenas a marca reta e uniforme onde o dente da ferramenta teria se apoiado para forçar a janela.

Nada foi roubado e eu tentava pensar nas marcas como algo feito por mãos humanas, e não "marcas de garra" como elas pareciam ser na verdade. O soldadinho voltou para mim de uma forma tão violenta e inesperada, que eu não podia explicar de maneira alguma. Meu coração se afundou nos pensamentos que eu tinha a respeito disso.

Eu sabia que era uma mensagem, mas parecia mais como uma piada doentia, anunciando a volta do meu predador da infância, ao em vez de ser algo a ser solucionado ou interpretado.

Passei a manhã inteira checando cada quarto da minha casa e o que continham neles, e nada tinha sumido. Eu só esperava que seja lá o que aquele demônio estivesse fazendo no banco de trás do meu carro, fosse apenas para me assustar uma última vez, e depois seguir o seu caminho.

Talvez o seu poder fosse enfraquecido quando estava tão longe do meu quarto de infância.

É muito mais fácil para qualquer pessoa em sã consciência convencer-se de que algum evento traumático, na verdade, tinha sido algo mais benigno do que sua mente a tinha transformado, mas neste caso eu não podia; aquele brinquedo partido ao meio não era apenas uma piada, mas sim uma promessa. A promessa que ele iria retornar, o que eu não queria nem saber.

Meus pensamentos naturalmente se voltaram para dentro das noites terríveis que eu tinha quando criança. Eu estava agora reintroduzindo em minha vida o medo de dormir, o desejo da luz do dia, e a ansiedade em relação a noite. Como um velho inimigo implacável, o meu medo crescia  ao longo do dia, levando-me a pensamentos estranhos e sinistros, e consequentemente, involuntariamente trazendo a coisa para minha mente.

Não me entenda mal, o meu medo não era só em relação a minha própria segurança. Quando criança eu acreditava que o meu visitante noturno estava apenas querendo a mim, fixado a obcecação de me ter. Isso, no entanto, mudou.  Eu estava preocupado. Agora eu não sentia nada a mais a não ser medo pelos meus entes queridos, porque você vê, eu não moro sozinho.

Minha namorada e eu nos mudamos juntos a dois anos. Eu já tinha causei danos suficientes até agora, e então desejo não revelar o nome verdadeiro e vou me referir a ela simplesmente como "Mary".  Mary e eu tínhamos uma convivência feliz e, de fato, nós estávamos muito apaixonados. Na manhã de natal desse ano eu estava planejando em pedi-la em casamento,  mas esse belo momento tinha  agora sido amargamente arrancado de mim devido a essa abominação rancorosa.

Eu sabia que Mary estaria em casa naquela noite. Ela trabalha com eventos e promoções e isso faz com que ela muitas vezes fique longe de casa por muitos dias seguidos, viajando por todo o país, coordenando varias conferências e exposições. Eu não reclamo disso, como ambos sabemos que eu sou um cara meio solitário, e que os dias se solidão normalmente me fazem bem, permitindo-me  mergulhar a cabeça em meus textos, absorvendo cada palavra, sem distrações.

Apesar disso, eu sempre sentia falta dela, e com o que acontecera na semana anterior, revivendo aquelas noites tortuosas e permitindo que a tormenta, eu sentia mais falta dela do que já tinha sentido em toda minha vida.

Ela chegou por volta das 18h e eu a cumprimentei com um sorriso, um abraço e um beijo apaixonado. Eu tentei esconder meu estado de espírito perturbado dela, mas Mary me conhece melhor do que qualquer outra pessoa e imediatamente eprguntou:
"O que há de errado?"
Eu tropecei e me atrapalhei com as minhas palavras enquanto eu explicava tinha escrito uma história sobre a minha infância e que explorar aquelas memórias obscuras e torcidas tinha me deixado um pouco desnorteado. Mary tem uma natureza incrivelmente carinhosa e ela imediatamente colocou sua mala no chão e sentou-se no sofá, com seu jeito suave e gentil, me pediu para contar sobre meu sofrimento.

Mas eu não podia!

Eu não podia mencionar essa coisa, esse miserável que já tinha encontrado o seu caminho para nossa casa, um invasor invisível e maldito que tinha sido conduzido para lá por causa da minha maldita curiosidade! Na época, eu achava que ela iria me achar um louco, mas agora eu gostaria de ter dito a verdade.

Se há algo que prejudica uma relação mais do que a mentira, é a meia-verdade. Não porque é enganosa, mas porque é uma corrupção da verdade; pervertendo  e abusando o outro para a necessidade do que fala.

Eu contei a ela minha meia-verdade.

Eu disse a ela sobre minha história, a da coisa no quarto estreito e o observador na poltrona do outro quarto maior, mas é aí que a verdade acabou virando uma mentira. Eu deliberadamente sem dó, mencionei que era, claro, apenas minha imaginação de criança, e "esqueci" de falar a respeito de ter voltado à cena do crime. Sabendo que ela iria ver a trava da janela danificada e as marcas de garra, eu a contornei em uma mentirinha de ter acordado com um ladrão tentando roubar nossa casa, mas o tinha espantado.

Eu era mais ou menos um herói. Eu tinha mentido para ela, e ela mostrou muita simpatia e bondade para a minha decepção.

Eu estava constrangido pela verdade, e agora estou envergonhado da minha mentira.  Se eu tivesse sido verdadeiro, então provavelmente nós  poderíamos tem enfrentado o perigo juntos, mas em vez disso aquela coisa pegou vantagem da minha desonestidade e colocou uma barreira entre nós.
Os eventos da noite passada  profanaram a coisa mais importante no mundo para mim.

A noite chegou com toda sua frieza, e as sombras não era bem vinda. Eu estava deitado na escuridão, esperando. Mary dormia ao meu lado, o som do seu respirar soava como um lembrete de companheirismo, mas apesar da minha crescente aversão à solidão, eu não teria um minuto de sono se quer naquela noite.  Por experiência eu sabia que meu visitante obscuro iria aparecer, mas faria isso com incrível sutileza, aumentando seu controle sobre mim a cada visita, como se precisasse tempo para adquirir forças; uma alimentação sanguessuga perante meu medo.

Mantive meus nervos no limite da razão, que lutavam admiravelmente contra meu corpo caso eu começasse a cair no sono. Mas no final das contas, a biologia ganhou e com meu relógio digital de cabeceira mostrando 4:00 am, o sono foi me acolhendo, o cobertor do esquecimento me relaxando, a ansiedade de meu corpo foi sendo lavada... Fui afundando cada vez mais no colchão macio e, finalmente, e finalmente meu corpo achou o descanso que tanto precisava.

Dormir, não importa o quão profundo, raramente é abrangente. Enquanto eu pairava sobre a iminência de um sonho, algo começou a me incomodar. Algo invasivo, mas ainda assim distante. Eu lentamente abri meus olhos que foram se ajustando na escuridão. Mary estava profundamente adormecida e me acalmei por ouvir sua respiração. O inalar foi seguido pelo exalar, de novo e de novo, ritmicamente, hipnoticamente, e comecei a aproximar-me do sono mais uma vez.

Mas, não. Havia algo a mais, outra coisa, distinta mas ainda assim indefinida.

Era um som distante, fora de órbita, obscurecido, quase como sufocado como se viesse de trás de... algo. Eu me concentrei, na tentativa de definir o que estava ouvindo, mas tudo estava muito tranquilo. Fiquei na cama por mais alguns minutos, mas a cada segundo que passava esse som quase inaudível continuava roçando em mim, como vidro quebrado em um nervo exposto.

O sono agora tinha sumido, e com muita frustração e mesmo relutante, eu decidi investigar a origem do ruído. Sentei na cama e ouvi atentamente. Era diferente de qualquer outra coisa que eu já tinha ouvido em minha vida. Silencioso, baixo, mas minha mente foi se ajustando para lentamente remendar a natureza do som. Estava certamente obscurecido por algo, mas a coisa mais próxima que eu conseguia relacioná-lo era a um... sopro repetitivo.

Eu me virei para checar Mary, vendo seu tórax levantar e baixar durante a respiração. Sabendo que ela estava intacta e bem, eu sai da cama. Quando me levantei, reconheci que o som agora estava mais alto. Mesmo no escuro, um feixe de luz vinha do corredor, pois eu sempre deixava a luz de fora do quarto acesa para que passasse por debaixo da porta, deixando assim o quarto mais visível.

Olhei em volta para ver se algo estava fora do lugar, mas tido parecia intocado. Minha mente vagou pelas minhas lembranças infantis no segundo quarto, quando o som podia ser ouvido vindo de uma ameaça invisível, porém presente.

Eu dei um passo pra frente e com isso, mais uma vez o volume do som aumentou. Enquanto eu ainda estava tentando decifrar as palavras murmuradas, eu agora conseguia ouvir a índole da voz. Era velha, arranhada pela idade em alguns aspectos, com um tom gutural. As palavras foram sendo repetidas em um ritmo que parecia ser frenético e ansioso, ainda abafada por uma barreira desconhecida.

Eu estava amedrontado, mas tirei forças por conta de Mary estar no quarto, e com a respiração trepidante, dei mais um passo lento e silencioso para frente, meus pés descalços amortecidos pelo chão frio.


De novo, a voz se tornou mais alta. Eu não estava certo se estava imaginando isso, mas eu podia jurar que aquilo ficava mais agitado enquanto eu me aproximava. O próximo passo que eu dei, sacudiu o meu próprio âmago, pois o que antes era um murmúrio de uma voz ilegível ficou mais alto ainda, entre as divagação de som que aquilo fazia, eu ouvi uma palavra. Uma palavra que me atingiu geladamente e fez meus ossos tremerem. Uma palavra à temer.

Aquilo falou o meu nome.

Nenhum comentário:

Postar um comentário